Temperar com Equilíbrio sem Deixar Insosso



Depois de viver mais de trinta anos em Minas Gerais, descendente que sou de várias gerações, todas basicamente mineiras. Parte oriunda de um ramo desembarcado na frota de Martin Afonso de Souza, tive o privilégio de ter a influência na origem da cozinha saborosa e complexa das minas gerais. Dentre parentes antigos e modernos, perpassando  pela lenda Guimarães Rosa, como historias contadas de minha avó materna, prima em primeiro grau de Gui, Bem do Gui: era benzinho nos textos e virou dona Bengui de um risco de namoro entre eles explorado pela política coronelista da época que ajudou a  expulsar  da cidade e apagar de sua vida as lembranças da época em que era comum grupos da cidade expulsar com violência quem se atrevesse a contrariar os coronéis, se envolvendo com as mocinhas do local. Ligado a isso havia uma política nefasta em seu nascedouro nessas cidades que afetariam a vida política ligada à personagem que veio a se tornar seu sogro. Já naquela época  surgia o grave imbróglio político que dominaria essa nação pela sua existência em um de seus núcleos atomizados pelas cidades históricas das minas. A forma abjeta como alguns poderosos, escondidos em suas pequenas e importantes cidades mantidas a ferro e fogo presas numa armadilha em nome da tradição como bases fortificadas de políticos preguiçosos e cheios de ganância.  Eram essas cidades o laboratório que gerou uma parte macabra da política brasileira. Nas disputas eleitorais, adversários eram dinamitados, enterrados vivos com falsos diagnósticos de doenças contagiosas. Os bons políticos (os há, pode saber) queriam se manter distantes desses laboratórios de loucos furiosos, do poder a qualquer custo. Como hoje, muitos que poderiam contribuir para a prosperidade da nação, foram desencorajados.  Como se sabe, o ouro cega.
 À margem disso, a maioria pacata e ordeira, desenvolvia a parte boa da cultura. Afinal, os descalabros eram na calada da noite e a população comum era exortada a não participar. Não questionar. Apenas se manter resignada e agradecida pelas dádivas divinas. A maioria do povo é boa, ordeiro e tradicionalista. Muitas vezes, isso permite uma minoria insignificante aterrorizar e se locupletar, como marajás, numa espécie de pequenos impérios. Pena que daí, surjam os líderes de muitas de nossas instituições.
Estou longe dessa época, graças a Deus, o mesmo não posso, infelizmente dizer, dos efeitos que finalmente estamos tentando limpar desse imenso e lindo País.
Nos dias atuais, vindo  trabalhar em São Paulo, gloriosa megalópole, que teve a vocação política diferente e que, por isso mesmo, delanchou e  é a grande reserva cultural do País e de parte do mundo, acolhendo e servindo, apesar de sua vocação à modernidade tecnológica, como um grande museu vivo das tradições religiosas, comportamentais e evolutivas. Na verdade o moderno desembarcou da necessidade de prover uma metrópole vibrante de todas as necessidades demandadas pela diversificação e grande vocação ao desenvolvimento, locomoção, convivência, hospitalidade, tecnologia e isso tudo sem perder nos bairros mais importantes o tradicionalismo, repeito humano e grandiosidade que deveria estar presente, pelo menos, nas outras capitais do País. Tem o grau de sacrifício? Claro que tem. É o destino dos empreendedores mas também dos abandonados nas outras origens.
Poxa! Mas o assunto não é culinária?
- Claro! É a expressão cultural que  sofre  sofreu a maior influência em todas as histórias da civilização e da formação dos povos.

 A culinária tradicional sobrevive em todas as suas formas e tem representações dessa grande malha complexa de gostos e sabores.
A princípio a culinária mineira tem uma fama aqui de ser pesada e precisar de esforço do organismo para sua digestão. Talvez porque nem todos tem a paciência de perder horas preparando, temperando e cozinhando em fogo brando. Em qualquer lar tradicional mineiro, independente do tamanho da família, o rango começa a ser preparado desde o dia anterior e entre 9 e 10 horas da manhã o fogo já está aceso e já tem panelas lá. Minha avó paterna, uma "bugra", pegada no laço para se casar com meu avô (como se dizia), morava em um lugar que nem energia elétrica tinha. Dormia as 8 da noite, acordava às 3 da manhã e o almoço era as 10. E durante 24horas por dia o fogão tinha alguma coisa era mantida aquecida no calor das brasas de toras de queima lenta (fogão a lenha também tem fogo brando).
A nossa culinária  sofreu influências do interior paulista uma vez que muito fora agregado dos bandeirantes desbravadores, muitos deles oriundos das primeiras cidades fundadas como São Vicente. Lembrando que mesmo as iguarias no início desembarcaram primeiro nos portos paulistas e no próprio transporte, em lombos de burros, demorando dias em longos e penosos trajetos, sofrendo em todas as fases influência de origem e nas paradas, que foram sendo implantadas, primeiro por aventureiros atraídos pelos aluviões e depois controladas pelo imperador e governadores das províncias à medida que o tempo avançava e a demanda aumentava.
Formas de conservação, temperos e leguminosas que se misturavam nos solavancos das viagens, na preparação aguçando a criatividade combinada com a "fome" que devia dar nesses trajetos. Sabe-se que a fome é um grande motor do desenvolvimento da culinária. Descoberta de novos condimentos nativos com a ajuda da população nativa. Tudo isso influenciou a culinária mineira e, é claro, a tradição portuguesa trazida pelos novos colonos.
  Uma terra rica em ouro, pedras preciosas e semipreciosas atraiu colonos e descendentes de vários níveis de sofisticação que se aproximavam e combinavam-se. A distância das Minas dos grandes centros e o isolamento dos primeiros habitantes desenvolveu uma proximidade e compadrio entre os moradores dos primeiros lugarejos tudo alinhavado pela igreja seguindo os aluviões e os outros incrustamentos preciosos. A cozinha das casas eram mais compartilhadas do que as salas e salões. O grau de intimidade podia ser medida pelo acesso às cozinhas. A maioria tinha o fogão de lenha como a principal peça da casa, muitas vezes ocupando a metade da cozinha. Algumas peças dessas tinha bancos à frente da fornalha onde crianças e adultos se reuniam durante a noite que geralmente terminava por volta das oito horas quando todos iam dormir. Nesses locais surgiram os famosos contos mineiros.
Um dos lados de meus ascendentes maternos veio do famoso João Batista Ferreira de Sousa Coutinho, que era dono de grande parte das terras auríferas em aluvião das Minas Gerais. Aquele poderoso baixinho, troncudo e soberbo, tinha uma necessidade imensa de ser reconhecido pelas autoridades e pelos moradores das cidades que controlava. Dando festas regadas a muito ouro e extravagâncias. Seus Ascendente construíram   igrejas e casarões em vários locais onde mantinha suas concubinas com criados e muito luxo. Mandava importar iguarias dos quatro cantos do mundo. Primeiro "coroné" dessas cercanias, descendente de mandatários delegados pela coroa portuguesa desde o fim da guerra dos emboabas que abafou o que teria sido o primeira tentativa empreendedora descolada do império dos paulistas nessas terras.  Em 1829, mais de 100 anos após  e, D Pedro I deu-lhe o  título nobre de Barão como presente por ter ajudado a "preservar" as riquezas da coroa criando vilas e conjuntos urbanos representativos na região reduzindo o risco de invasões de outros países europeu. Mais tarde isso facilitou ligação pelas ferrovias para transporte de minérios e passageiros. Embora tivesse tantas esposas não gerou nenhum filho, segundo as lendas.
Numa localidade chamada "BAÚ", Construiu uma grande sede de fazenda maravilhosa para sua última amada, pela qual abandonou todas as outras trazendo para morar lá. Uma delas que era tida como exímia cozinheira. A nova "baronesa" era filha de um rico comerciante que a deu em casamento ao potentado barão. Mandou construir ali uma barragem de pedras dando origem á um enorme e reluzente lago cercado por frondosos pinheiros. Uma estrada calçada de pedras arredondadas, todas do mesmo tamanho, corcoveava seguindo o fio d'água que se formou dessa barragem. Mandou plantar palmeiras imperiais dos dois lados da estrada que terminava em um vale formado pela barragem, pelo rio perenizado que saía em filete dela e terminava em frente a um casarão construído sobre pesadas pedras cortadas precisamente em retângulos do mesmo tipo usadas na construção da igreja matriz de  Nossa Senhora do Bonsucesso e de outras tantas da região.
A mansão possuía 14 quartos enormes, 4 salões e uma cozinha de 10x10 metros. No centro tinha um enorme fogão a lenha todo revestido com ricos azulejos azuis feitos pela Cerâmica Nacional criada por volta de 1703 para prover os casarões dos nobres da região. além de produzir tijolos refratários para fornos de redução de minério de ferro e outros. A região se tornaria em alguns anos um fornecedor de lingotes de ferro fundido que era usado em fundições e exportados para a Europa.
A estrada continuava além da mansão, e subia atravessando a barragem onde logo após ficava as moradias dos escravizados, um enorme quintal de frutíferas com mangueiras que existiam até cerca de 20 anos atrás.  Tinha mandado trazer flores que combinavam com as cores de borboletas locais. Tudo circundado com árvores que repeliam o grande número de insetos. Todo o conjunto mantinha a mesma frescura durante grande parte do verão.  No centro do local tinha um grande engenho que era puxado por 2 bois carreiros. A engenhoca terminava em uma bica de quase um metro de largura que despejava o caldo de cana em um enorme tacho quadrado que quando atingia o seu máximo abria-se uma comporta por meio de um mecanismo feito com embira e couro. O suco de cana escorria então por uma canaleta de madeira e caia em um enorme tacho de cobre, sobre uma fornalha imensa com um braseiro tão intenso que era difícil de olhar diretamente.
Em poucos minutos a garapa atingia um ponto de melado cor de caramelo. A cozinheira mestre e seus ajudantes, que tinha sido uma das "manteúdas", nem precisava mais testar para saber o ponto correto da rapadura que se formava. Correntes então levantavam o tacho que através de um cadinho num dos lados despejava em um outro comprido canal até uma espécie de forma quadriculada de madeira escura sobre uma grade de madeira sob a qual corria água para resfriar as rapaduras de forma que ficassem homogêneas e eram cortadas em pedaços de 25 centímetros por 8,  que era a largura da cumprida forma.
Parte dessas rapaduras eram sovadas com alguns ramos para clareamento e eram moídas virando açúcar cristal, quase tão claro como os atuais. Não havia adição de nenhum produto químico para o branqueamento do açúcar. 
Em outras sessões de produção, o melado era despejado em barris de madeira antes que atingisse o ponto de caramelo. Esse melaço tinha 3 objetivos :  culinária, fábrica de azulejos como fixador de pigmentação e era misturado como ligante de areia de fundição. Tudo era feito pela observação e testagens manuais do produto. Não havia manômetros ou outros indicadores de temperaturas. Apenas a experiência das senhoras que administravam todo o processo.
Uma outra característica do lugar era ficar num ponto central entre Caeté e Barão de Cocais, entre duas sedes de fazendas de mesma propriedade e igual vislumbre. 
O imenso solar do Tinoco era o mais imponente e luxuoso. Fora lá que o barão recebeu a comitiva do imperador, era lá que haviam festas com lindas baixelas de ouro puro, talheres, torneira, já havia água encanada com fartura. A mesma represa que alimentava a cerâmica, era usada numa grande piscina no fundo, ornada por azulejos de uma linda cor azul que refletia o céu, e em duas enormes caixas d´água e de uma linda fonte na frente do casarão.  O chão do assoalho de peroba, brilhava tanto que refletia as imagens perfeitamente. Imagens alongadas pela claridade que entrava por enormes janelas em estilo colonial. Esse casarão veio a ser residência oficial de um famoso vice presidente de Minas Gerais(vice governador nomeado) e foi presidente interino, substituindo Cesário Alvim (tudo isso no alvorecer da república), que como integrante do Partido Republicano de São Paulo, defendeu entre as causas mais relevantes, a do abolicionismo, em 1887. Criou junto com mais alguns notórios, o Clube Republicano de Minas Gerais. Caeté possuía relevância na política do estado e do País. Ao casar com a professora e diretora Helena de Barros, filha de notório fazendeiros da região. Ao pesquisar para esse pequeno resumo, longe de esgotar esse assunto,  é impossível digredir de que estamos parados no tempo desde essa época. Lendo textos de alguns documentários da época (escritos é claro, publicações e muita coisa escrita nas casas legislativas, textos preservados pelas três forças, caso contrário já não existiriam.
Veja que o meu objetivo aqui era, um pouco, romancear sobre a proliferação de receitas tradicionais, nascidas desde as casas mais luxuosas de autoridades até o casebre mais simples também tradicionais dos pacatos. Eu meu amigo Osvaldinho sudário, filho do cabo Vavá e Paulinho de dona Nilza (meu parente e descendentes de muitas dessas figuras descrevo aqui de forma simples e despretensiosa, afinal não sou historiador e nem preparado para isso, mas durante minha adolescência, nós três,  numa pindaíba crescente, resolvemos enveredar por alguns rios nas cercanias de Caeté, com nossas bateias, feitas no quintal de dona Nilza, com chapas de flandres. Com a ajuda do pai do Paulo, sem nenhum conhecimento de garimpo (olha que nem sabíamos que era necessário mercúrio para salientar o resíduo de ouro eventualmente preso no fundo da bateia. Numa dessas aventuras, pulamos uma cerca de um terreno, na época, pertencente à Rural Mineira, e demos de cara com as ruinas desse casarão no Baú, e com essa estrada calçada que descrevo no início. Éramos ignorantes de tudo...mas dava para ver ali sinais de destruição voluntária de quem queria apagar a história.  A estradinha circundava outras pequenas ruinas que não tivemos acesso  e partes de um quintal do lado de uma represa feita de pedras. Uma grande represa. Devia ter uns 30 metros de altura e do lado os restos de uma enorme horta com mostarda e algumas hortaliças que notava-se de rebrota espontânea já em estado final de sua extinção total. Umas ruinas do engenho, parte da madeira jazia em degradação no lago da represa, cheia de galhos e toras que não escondiam a beleza do lugar. Num aplainado, sob a represa, erguiam quatro colunas cumpridas de pedras avermelhadas, bem justas, e pedaços de toras de baraúna uma delas devia ter quase um metro de largura e um dos lados. Do lado de uma das colunas, alguns mamoeiros doente, bem velhinhos, pés de fumo, muitos,  pedras empilhadas sobre uma espécie de caixa de alvenaria. 
Ao fundo, um cemitério antigo, com uma capela destruída, com uma tumba no interior. As tumbas estavam quebradas e não parecia ter nenhum vestígio humano. E é claro que nossa covardia não nos deixou olhar de perto.  Debaixo de uma pedra que deveria ter sido uma parte do altar, tinha restos de uma caixa de madeira e alguns papéis com vestígios de escrita de pena de tinteiro, mas tudo borrado. A pedra sobre ela era muito pesada e não conseguiríamos remover.  Em conversas com um tio do Paulo na região, ele contou umas histórias inclusive de que a casa tinha sido destruída num incêndio provocado, supostamente, por devaneios de uma das "esposas" do Barão mantida presa no interior por causa de uma doença contagiosa grave na época. Aliás, a pequena e bucólica Caeté teve grande relevância política  e uma xenofobia galopante, em um longo período de política que pretendia manter os estrangeiros longe das riquezas da região, foi palco de investidas violentas, detonação de dinamites para demover adversários políticos. A economia do lugar, durante muitos anos, era muito maior do que a aparência simplista da cidade.  Quando você olha outras cidades com o destino parecido, o desenvolvimento local sempre foi reprimido per figuras importantes do cenário político do País.  Tidos como os berços bucólicos de figurões que pensavam estar preservando suas raízes intocadas e sempre podiam voltar ao contato humano desse berço.
   
 Primeira Parte  : 





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